Litterae et una vita et idem.

A Literatura e a Vida são unas!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

José Luis Peixoto, livro, uma odisseia moderna




 
Tal como o autor, também não gosto de ler novidades, isto é, livros que estão na moda, aqueles que vemos toda a gente no comboio a lê-los, ou a fingir que lê.
Gosto de os deixar pousar, que a fama passe e só então me dedicar a saboreá-los por aquilo que realmente são, significam e valem.
Talvez por isso as minhas leituras ainda andem pelo Camilo e Eça. Com alguns Saramagos e lobo Antunes à mistura. 
De tal sorte ser este o primeiro livro de José Luís Peixoto que leio e empurrado para ele por um golpe publicitário da livraria Wook.
Mas em boa hora me deixei levar até ele porque francamente é do melhor que tenho lido de romancistas portugueses.
Desde logo, este "livro", não é um livro, são vários livros formando um só, o livro, a epopeia de quão custoso é ser português.


 
  1. O livro do amor e da paixão – tal como outros autores, também Peixoto cria e dá vida ao seu par amoroso, os inesquecíveis Ilídio e Adelaide, tal como os verdadeiros pares amorosos, este, igualmente é um amor infeliz. Ilídio filho sem pai e abandonado pela mãe, vem a ser pai sem filho e esposo sem esposa. Adelaide de uma tão grande família como a pobreza que de tão grande não tem lugar para ela, acaba por viver em família tão só como na sua origem. O resto faz o destino e as peripécias da vida, vida inexorável que não permite aos amantes mais que um breve momento de encontro. Par amoroso que confirma a regra "todos os amores felizes são felizes da mesma maneira, os amores infelizes são infelizes no seu modo único e original".
  2. O livro da epopeia da emigração portuguesa – uns em busca de melhores condições de vida, outros para fugir da guerra colonial, alguns correndo atrás da ilusão do amor. Madrasta terra esta que não dá aos seus filhos nem pão, nem paz, nem amor…
  3. O livro do Alentejo "pró fundo" – a vida dificultosa na pequena vilória do Alentejo, julgando pelos traços de escrita de José Luis Peixoto, as casas caiadas, a luz natural, os sobreiros… não andará muito longe para onde hoje é empurrada a vida da mesma vila. Alentejo interior de onde quem manda teima em esquecer e votar ao abandono. Mesmo a retirar o que já havia sido conquistado. É o Alentejo antigo que se mistura com o Alentejo atual em o livro.
  4. O livro da amizade e solidariedade – os laços que ligam a bondade do pedreiro Josué, "pai" necessário de Ilídio, a este e ambos ao infeliz Galopim e até mesmo ao gabarolas Cosme, vão para lá de uma simples amizade, entram no campo da solidariedade, daqueles que dão a vida pela do amigo.
  5. Livro do abandono e da tristeza – há qualquer coisa nas personagens de livro que as faz tristes e dessa tristeza nasce um sentimento de abandono, mais que de solidão, são personagens ensimesmadas, trilhando a sua vida de uma forma de tal modo desamparado que as faz para ali estarem, abandonadas.


Muito podia especular mais e caso quisesse encontrar outros livros no "livro", mas não vale a pena entrar mais por essa via.
Numa navegação (escrita) à vista, José Luis Peixoto ruma o seu barco entre os colossos Lobo Antunes e Saramago, quanto a mim mais rasante a Saramago, encontra, no entanto, o seu próprio mar criativo. E é um mar novo, de águas límpidas, frescas, puras e jovens, aquele que José Luis Peixoto nos oferece ao desfrute.
Livro, uma obra com lugar já marcado na Literatura portuguesa.


 
jaime crespo

Rui Cardoso Martins – a odisseia da expiação - Prémio romance e novela da Sociedade Portuguesa de Escritores


 



 
Ora cá temos o segundo romance de Rui Cardoso Martins, o qual constitui quer do ponto de vista meramente lúdico do leitor, quer ainda como objeto artístico passível de uma análise crítica mais exaustiva, pois ao adicionar-se ao seu primeiro romance, o gostoso "e se eu gostasse muito de morrer", fornece-nos já um naipe interessante das linhas de força e dos rumos estéticos que Rui Martins pretende trilhar.
Tenho assim matéria quanto baste, para uma análise, ainda que ligeira, sobre os passos formais, ideológicos e fundacionais da estética que nos é servida pelo Rui.
Neste novo livro, Rui Martins volta a brindar-nos com um muito original Ulisses que ao longo do dia vai percorrendo a sua Odisseia através de pequenas peripécias e muito sentido de humor.
Se no primeiro romance, essa Odisseia se vai desenvolvendo sob o pano de fundo que lhe dá o cenário e ambiência, através da cidade e sociedade de Portalegre, uma cidade exótica alto-alentejana, entre serra e planície, brindada por belos dias luminosos intercalados por outros cinzentos e chuvosos. Cidade de grandes contrastes: quentíssima de verão friíssima de inverno. Agora, neste seu "deixem passar o homem invisível", o cenário é transportado para a luminosa mas telúrica e tempestuosa Lisboa, apesar de tudo, cidade mediterrânica.
Mas se no primeiro romance temos um Ulisses que passeia a sua juventude pelo cinzentismo portalegrense, neste, Ulisses é um cego, apenas vê uma estreita linha de luz, de meia-idade que se move pela luminosidade e espertalhice lisboeta.
Definidas as normas formais, debrucemo-nos um pouco sobre a filiação escritural do autor. Apesar do apadrinhamento (no bom sentido) que foi concedido por Lobo Antunes, é mais com a escrita de Dinis Machado do "molero" e com Mário Zambujal "dos bons malandros" que eu identifico as influências e afinidades literárias da escrita de Rui Martins numa linha de escrita sempre prenhe de ironia e que vem de longa tradição na escrita portuguesa.
Toda esta parafernália de instrumentos formais vão, em minha opinião, permitir a que a criatividade do autor se revele e expanda através do que chamo "estética da expiação", nestas odisseias protagonizadas pelo Ulisses de Martins, o leitor fica sempre com a inquietação de que o Rui, através da sua escrita anda em busca da expiar algo que é ao fim e ao cabo a pena que qualquer humano paga pela sua existência.

 


 


 
Rui Cardoso Martins, deixa-me com água na boca para o que escreverá a seguir, pois nestes dois romances sentimos um escritor em crescimento a cada parágrafo. Como o autor é possuidor de uma tremenda fluidez de escrita e de um domínio técnico exuberante faz-nos cair, leitores, no engodo de pensarmos que estamos perante uma obra fácil e linear, coisa que está longe de acontecer ou está presente apenas como aparência, pois por detrás da aparente facilidade encontramos uma obra cheia de complexidades e surpresas, tal como complexas e surpreendentes são as nossas vidas.
Com estas duas obras, Rui Martins constrói um mosaico, tipo tabuleiro de xadrez com quadradinhos a preto e branco, obrigando-nos a descobrir a multiplicidade de possíveis jogadas.
Se no primeiro romance, Ulisses desenvolve e expia a sua existência caminhando do cinzento de Portalegre até se encerrar numa escura cova do cemitério da cidade, no novo romance, Ulisses perante a luminosidade de Lisboa é ironicamente cego e acompanhado por uma infeliz criança vai fazer o seu percurso através do esgoto da cidade até desembocar no lodaçal do Tejo. Diria que estará a expiar a ousadia anterior de ter desafiado o destino ao encerrar-se vivo num local destinado a guardar os mortos. Atenção que estou apenas a tratar de uma observação crítica à obra de Rui Martins, pois os romances são independentes bem como as personagens o são diversas, eu é que estou a coser linhas entre elas.
Tal como no primeiro romance, em que Ulisses se encerra na cova com uma mina na mão, também agora o final é apocalíptico, o Ulisses cego e o menino infeliz vão desembocar no lodo do Tejo mas após um novo terramoto em Lisboa e ali ficam abandonados à espera do tsunami que se adivinha.
Também aqui Rui Martins não concretiza o desfecho final preferindo deixá-lo em aberto à interpretação do leitor, como se todos tenhamos uma desgraça suspensa sobre as nossas cabeças mas esteja nas nossas mãos evitá-la, por isso, apesar de tudo e depois de percorrida a via-sacra o autor ainda nos deixa a réstia de esperança (a réstia de luz que o advogado cego ainda consegue ver?) de que a remição é possível e a salvação (ou ressureição?) inerente a ela.

 


 
Apesar de umas vidas desgraçadas, ainda assim, Rui Martins deixa-nos respirar um pouco a utopia esperançosa da salvação. Ou melhor, deixa o destino de cada um nas suas próprias mãos e meus senhores e minhas senhoras façam o favor de se servirem.

 

 
Jaime Crespo

 

 

Rui Cardoso Martins, e se eu gostasse muito de morrer, a minha leitura(ouvindo lightnin' hopkins greatest hits…)


 

reflexões acima do joelho motivadas pela leitura do livro "e se eu gostasse muito de morrer" de rui cardoso martins


 


 


 

portalegre. cidade que não passou de aldeia grande. terra de lagóias. abençoadas margens de baco.

a jornalista que acompanhou o escritor à cidade chamou-lhe "twin peaks". desta nunca me lembrei eu.

mas há anos, quando ainda por lá escorregava na calçada inclinada da rua do comércio, achei-a parecida à cidadezinha que servia de fundo a um policial francês e que tinha o sugestivo título de "balada da cidade triste", de pierre simiac (les femmes blafardes, no original).

curiosamente foi no cinema que encontrei a denominação perfeita para a minha aldeia natal, tolosa, no distrito de portalegre, nada mais nada menos que "dogville".

pois claro, já estão mesmo a ver os ambientes, twin peaks, cidade triste, dogville… é uma 5ª dimensão escondida ali num cantinho de portugal.


 

(a música passou para os ladysmith blackmambazo)


 


 

apesar de termos pisado as mesmas pedras da calçada e provavelmente petiscado nas mesmas mesas das sedutoras tascas marchão, david, escondidinho ou marmelo; bebido uns canecos no joia, painel; cafézadas no alentejano, facha, central ou tarro (eu ainda as sorvi no finado plátano, hoje banco ou seguradora ou as duas coisas).

mesmo encontrando velhos conhecidos, tininho, matcha, pelo livro afora, nunca me cruzei com o autor. o pai sim, foi meu professor.


habituei-me a ler e a gostar de ler rui martins nas crónicas "levante-se o réu", primeiro através da internet, quando estava emigrado, depois sentindo bem o cheiro da tinta e o deslizar das páginas, sedosas, sedentas, entre os dedos.

vai ser com tristeza que hoje ao tomar da bica matinal não a acompanharei com o levante-se o réu de um lado e a crónica do pulido valente do outro. o meu pequeno almoço ficará mais só. mas temos que mudar e ir à vida senão paramos e ficamos com vontade de morrer. muita. não é rui?


 

(muda o disco para carlos paredes – verdes anos)


 

o que poderei dizer do livro? que gostei, transmite na perfeição as vivências e ambientes da portalegre que conheci e me habituei a gostar (afinal é a minha primeira cidade). vidas e ambientes a adivinhar o drama e ele acaba sempre por chegar, por vezes da maneira mais cruel, inesperada e dolorosa.

por isso no alentejo gostamos muito de morrer.

felizmente muito menos de matar ainda que às vezes…


 

o livro é uma diversão pegada de leitura. dá prazer ler um livro assim, bem construído e bem escrito. vai de carrinho até ao episódio do bispo, aí embatuca um poucochinho, trava, haverá algumas contas mal ajustadas entre o autor e a igreja ou algum seu representante terreno? não é da minha conta apenas noto alguma quebra na fluidez da história.

ou seria eu que já estava cansado por ler de seguida sem parar pela tarde, noite, madrugada até manhã… entre as gotas grossas de chuva lá fora.



 


 


 


 


 


 


 


 

o livro fala da morte mas é afinal uma autópsia, escrupulosa, muito bem feita, como aquelas que vemos nos filmes tipo csi em que não escapa nada, ao modo de ser portalegrense.

recomendo vivamente a leitura do livro. eu vou reler para ver se na pressa e extasiamento da primeira leitura não deixei escapar mesmo nada.


 

Jaime crespo

Orhan Pamuk, vermelho, uma leitura


Finalmente, devido a contingências várias, completei a leitura desta obra, quase três anos após ter iniciado a leitura.

Um dos fatores que terá atrasado esta leitura e não displicente foi o fato de ter mais tempo para saborear a intriga, o romance, a trama, as frases, palavra a palavra do manancial escrito.

De fato, para mim, foi uma das melhores obras que me foi dado ler nos últimos tempos.

E sobre ela o que poderei dizer mais que é uma delícia?

Pouco ou nada, tudo o que acrescentar venha só lhe retirará valor…

Poderei dizer que estamos perante uma obra que representará para a Turquia e o Oriente o que representou para o cânone literário ocidental "o nome da rosa" de Umberto Eco. E as afinidades são algumas. Apenas afinidades. Também esta obra coloca em confronto duas visões do mundo: a (pretensa) visão de Deus e o modo de ver profano, humano.

Quando todo o Ocidente europeu vivera o choque renascentista, se humanizou e se prepara já para enfrentar as Luzes, temos uma Istambul, capital do império Otomano, que se prepara para as celebrações do milénio (em anos lunares) da Hégira e cujos pintores se encontram perante o desafio a aceder a uma nova pintura, humana, como se pratica no Ocidente e lhes chegam notícias sobretudo através dos contactos com Veneza, e o apelo da tradição que manda pintar do mesmo modo, a visão de Deus, as coisas mundanas.

É um conflito duro, de levar à morte e perante o qual ninguém pode ter certezas sobre nada.

E é quanto a mim a principal dádiva que este romance fresco nos oferece: a dúvida.

Dúvida de como devemos dirigir a nossa vida, dúvida nas escolhas culturais a fazer, dúvida até perante o objeto do amor e que se ama.

Alegremo-nos, os tempos dos bons romances estão de regresso.

Marco Laureano, a chave, a minha visão


 


Dissertação, breve, sobre cinema, tendo à mão "A Chave"

Há três géneros cinematográficos que não gosto!

A saber:

  1. Gangster's e mafiosos. Não gosto destes filmes porque me perco ao fim de meia dúzia de minutos. São tantos tiros, tantas mortes que a cenas tantas já não sei quem é pelo Al Capone ou quem dispara em favor de Meyer Lansky. Muito menos pela polícia, porque estes são por todos.

    Mais uma coisa que me aborrece, é que nesses tempos gloriosos dos filmes série B, os gangster's não passavam de testas de ferro a dar cobertura aos negócios de polícias, procuradores, juízes, políticos, gentes das finanças.

    Hoje é precisamente o contrário.

     
     

  2. Os western's tipo John Wayne de lencinho ao pescoço, armado em mariconço, atirando a torto e a direito contra os peles vermelhas, umas gentes cabeludas, com penas de peru ou pavão nas cabeças, parecidos com grupos de junkies dirigindo-se a wodstock mas sendo massacrados pelo tea party direitista republicano intolerante.

    Aqui, o final é de previsibilidade absoluta, os tipos amaricados de lencinho ao pescoço ganham sempre por uma abada e os pobres peles vermelhas nem no cinema tem a sua hipótese de vitória.


     

  3. Finalmente, o terceiro género de filme que suporto a custo, é o terror. É sangueira (tomatada) a mais. Violência indiscriminada e sempre praticada por pobres patetas atrasados mentais, pretos, estrangeiros em geral, deficientes, resumindo, por alguém portador de algo que o torna diferente do comum e do que é aceite.

    Também aqui o mistério é facilmente resolúvel, o culpado é sempre a ovelha negra que se destaca de dentro do branco rebanho.


     

    Depois há filmes que nem sim nem não, nem sei porquê.


     

    Também não descortinando os porquês, há filmes dos quais gosto. Gosto alguma coisa, gosto um pouco mais ou menos ou gosto bastante.

    Mas não sei porquê. Pode ser por tudo ou por nada. Ou o nada que é tudo, do Pessoa, ou do Campos, ou do Caeiro. Que chato era este vários gajos.

    Nesta categoria dos remediados que eu gosto, encontro a curta do Marco Laureano "A Chave".

    Depois de ver o filme, vi o óbvio: todos quando nascemos trazemos dentro de nós uma chave, a chave que nos permite ou não, abrir as portas da existência. E é esse motivo que nos mantém vivos, pois caso contrário, à primeira oportunidade matávamo-nos Isto é, se o sentido da vida fosse apenas a marcha para a morte. Andaríamos todos, o mais depressa possível, a caminho do mar para descobrirmos que não temos guelras nem barbatanas como os peixes, ou em alternativa, atirámo-nos das janelas, dos nossos apartamentos altos de citadinos apenas para descobrirmos que não somos dotados de asas como as aves.

    A melhor maneira de admirar "A Chave" é pegar numa lata de coca-cola, daquela a sério cheia de calorias e açúcar como o caralho, um cachorro daqueles com salsichas enormes e grossas, a vazar mostarda e na outra mão um cartucho de pipocas. Pode-se equilibrar a lata num dos joelhos, and let's go to the trailer.

    "A Chave", ouve-se o grito convicto do realizador "ação!", bem, a convicção é mais uma questão de fé. Mas também, como se sabe, tudo isto, nós, o governo da nação e até, imagine-se o filme, tudo, está dependente da termodinâmica dos fluidos.

    Uma vassoura, o quanto baste à mão, aconselha-se vivamente, não iremos virar Mestre com a sua Marguerita. O que já não desejo nem aos piores inimigos é que se apaixonem pela Lolita, nos dias que correm sujeitavam-se a julgamento por pedofilia.

    Não queria falar de sexo, mas já que a conversa / escrita, me trouxe para aqui, não poderia deixar de usar esta chave e abrir a porta.

    Nunca conheci nenhum realizador, pessoalmente falando, e tenho esta chave por desvendar, isto que por aí se ouve de que os realizadores papam as atrizes, pelo menos as melhores é verdade? A sê-lo, eh pá. Isso é que é cá uma ganda chave. Eu, por mim, contentava-me com as figuras secundárias, mesmo algo feias, grandes e gordas.

    A cada qual a sua psicose, ou com a unha coça a micose.

    Já nos créditos, somos brindados com uma fantástica chave musical para fechar com chave d'ouro.

    Mas entre o grito de ação e a espetacular música final, há uma chave para achar, para desvendar, ou para utilizar.

    Essa é a tal chave que cada ser humano traz em si e tem que descobrir. Não só a chave mas como e onde utilizá-la: no amor, na vida ou na morte, no ramerrame dos dias comuns, numa inesperada e insólita onda de genialidade criativa.

    Que o cinema dê a cada um a sua chave.


     

Jaime Crespo

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Revisitação a Miguel Torga – poeta da Natureza e do Homem

(ouvindo: Miles Davies "whispering" e "walkin'";

Glenys Lynos / Zeger Venderstenne; Orquestra da Rádio Sinfónica de Ljubliana, maestro Anton Nanut – " A Canção da Terra", de Gustav Malher;

a mesma obra mas interpretada por Jessie Norman / Siegfried Jerusalém, Berliner Philharmoniker, Maestro James Levine)


 


 

Tese: uma condição atávica de forte ligação à terra, a revolta visceral à religião propagada pela igreja, a encarnação de uma poesia (escrita) de carácter fortemente telúrico, a revolta da condição humana perante as contingências da vida buscando em cada acção a liberdade, a acepção de um paganismo pragmático como filosofia de vida, são os constituintes activos da estética torguena.

Ambiente: Homem em comunhão e identificado com a Natureza, verificando-se essa comunhão em todas as horas, casos e acasos, bafejada quase sempre pela desgraça e mais raramente pela graça (do natural).

Cenário: as paisagens inóspitas e desoladoras (quase sempre) de Trás-os-Montes e Alentejo; mas também potenciadoras de uma vontade férrea de rasgar fragas em busca da luz e da vida, renovando-se e regenerando-se em luta contínua no desenrolar acidentado do ciclo da vida.

Atrevimento: mostrar Torga como poeta de viagens.


 

Após o post, gentil e simpático aqui deixado por Joaquim Castanho (6 de Setembro pretérito) me ter suscitado mais algumas reflexões em torno de Miguel Torga e também me ter reaberto o apetite voraz pela releitura de alguma da sua poesia (a prosa deixemo-la para mais tarde) era inevitável, perante uma irresistível força de vontade interior, voltar a discorrer sobre o assunto.

Comecemos pelo mais peculiar e que aqui deixo em jeito de curiosidade jeitosa para os mais distraídos para com a obra de Torga e que de tão distraídos porventura percam um breve momento de seus importantes afazeres numa breve paragem aqui no fongsoi.

Não raro se diz que Portugal tem poucos, e com pouca qualidade, escritores de viagens, o que é ainda mais estranho sendo o português um natural viajante (tema para futura dissertação), no rol e com qualidade quase que só se aponta o ancestralíssimo Fernão Mendes, esquecemo-nos de Torga, homem do século XX português e talvez por isso ainda anda desarrumado pelos cânones, mas que foi um enorme escritor de viagens, cultivando o género ao longo dos seus XVI diários não só na forma narrativa mas levando ao género os travos e aromas da poesia. Atrevo-me pois a considerar Torga como um poeta de viagens, género que bastamente cultivou ao longo dos seus diários e com que belos frutos dessa colheita nos podemos deliciar…


 

Nesses cantares de andarilho alguns poemas foram escritos no nosso Alentejo (des) encantado. Concretamente no distrito de Portalegre, sem desprimor de outros locais, encontramos poemas com registo em Monforte, Sousel e este que aqui vos deixo apresentando como certidão de nascimento Alpalhão, a 1 de Novembro de 1952.


 

"Insónia alentejana


 

                Pátria pequena, deixa-me dormir,

                Um momento que seja,

                No teu leito maior, térrea planura

                Onde cabe o meu corpo e o meu tormento.

                Nesta larga brancura

                De restolhos, de cal e solidão,

                E ao lado do sereno sofrimento

                Dum sobreiro a sangrar,

                Pode, talvez, um pobre coração

                Bater e ao mesmo tempo descansar…

In, Diário VI


 

(fotos retiradas da página da EB1 de Alpalhão)


 

Recordo com nostalgia, o brilhozinho nos olhos, o sorriso sardónico por detrás do bigode grisalho mas bem cuidado, o pigarro aclarando a goela livrando-a de uns gramas de nicotina, o ilustre Dr. Barrocas, lídimo professor de português, orgulhoso de si mesmo, vaidoso, do alto do estrado magistral mostrava-nos ufano, a estes que a terra há-de comer, os seus livros com dedicatória e autografados por um tal de Adolfo Rocha para os amigos, Miguel Torga para os leitores.

Jaime Crespo


 


 


 

Provérbio Primeiro


"A própria lança contra o próprio escudo"
Era uma vez...
    Um país cujo povo não era racista.
    Já imaginaram Pátria assim? Tamanha e com tanta tolerância?
    Pois é. Até custa a crer em tal coisa.
    Que era dádiva divina, dizia o povo.
    O povo de que vos dou notícia, havia, em tempos remotos, sido um dedicado retransmissor da fé divina, a verdadeira, a católica, a apostólica, a romana, que espalhou pelos quatro cantos da Terra, abandonando os seus lares a troco de nada. Apenas aguardando a salvação. Futura.
    Em compensação, porque nestas coisas da fé tal como na vida em geral as compensações são sempre matéria a ter em linha de conta e nunca devem ser descuradas sob a ameaça de para sempre nos penitenciarmos, o Deus verdadeiro glorificou este povo dotando-o em generosidade e benevolência para com todos os outros povos.
    Ao fim e ao cabo todos somos filhos de Deus, ou não será assim?
    Nesta confraria de bondade apenas se levantavam algumas dúvidas e muitos obstáculos para com os Mouros, os Judeus, os Índios (de ambas as índias), os Pretos, os Ciganos, os Imigrantes, qualquer espécie de transumantes ou tendentes ao nomadismo, marca de primitivismo dos povos e como se sabe pouco católica, e os Pobres.
    O curioso da história é que este povo era um povo de mouros, judeus, índios, pretos, ciganos, imigrantes, emigrantes, apresentava um elevado grau de transumância crónica e ancestrais tendências nómadas, por detrás da fachada católica habitavam mais as seculares tradições pagãs, e mais, era sobre todas as coisas um povo essencialmente pobre.
    Pobres de espírito!
    Como acabou a história? Bolas, isso já vocês deviam saber!
    Felizmente ao contrário do afirmado por doutas sapiências, a História ainda não acabou, nem mostra sinais de envelhecimento.
    Mas caminha para um final triste: AUTODESTRUIÇÃO!
jaime crespo

A short stories about ordinary people


Story number one: a tail of a city
Cauma, a cidade do Sacrificado Nome de Nossa Senhora. A mui plebeia e nem sempre leal cidade de Cauma. É a história desta cidade que hoje aqui me traz à presença de vossas senhorias.
Àquela época, era para lá dos confins do Mundo, ultrapassadas que estavam as terras de Preste João, herói enigmático e acidental na História patriarcal. Para lá das Índias e Ceilão. Um ano para lá chegar.
Três ou mais levou Michelli Brandoni, explorador e cronista napolitano, tomado também como conselheiro, ao serviço de Sua Alteza Real El-Rei D. Manuel, a regressar ao reino e junto de seu Senhor lhe dar as boas novas.
Mal atracada estava a nau ao porto de Belém quando uma coche Real conduzido por homem de sua confiança e guardado por guardas do paço, levaram o nosso cronista directamente da abjecta nau à presença de Nosso Senhor.
Conduzido aos aposentos Reais, observou Michelli Brandoni com largo sorriso nos lábios que o jovem príncipe, D. Sebastião, ganapo dos seus cinco anitos, cavalgava em fúria uma sua criada enquanto com uma espada de pau desancava outra enquanto gritava: " – Toma! Toma, mouro infiel! "
D. Manuel observava o futuro Rei embevecido e dizia " – Ai que lindo menino! Tão lindo quanto o Sol que nos ilumina a todos. Senão mais ainda. Luz que ilumina nossas almas e conforta."
- Vinde, vinde. Por aqui meu cronista geral e fiel conselheiro. Ui, que tresandas que nem um porco. Safa!
- Perdoai-me senhor. Pois de viagem sou chegado e nem tempo de respirar os bons ares da Vossa cidade eu tive…
- Nem de visitardes as putas da calçada do castelo. Ah! Ah! Ah! Meu malandro. Sossegai que assim sejam boas as novas que me trazedes e ordenarei a uma das empregadas que vos lave por fora e por dentro. Ah! Ah! Ah!…
Ai tão bom Senhor que era….
- Mas dizei-me meu bom Michelli, como é esse novo lugar a que tu e teus companheiros chegaram? Cauma!? Mas que raio de nome…
- Saiba Vossa Senhoria que entre nós ía um Vosso fiel servidor recrutado no Brasil, um índio convertido que são os que mais fé revelam nos piores momentos.
No preciso momento da nossa abordagem àquela praia, se levantou forte borrasca que nos atirava a todos de um lado ao outro da embarcação, no meio de total desorientação ergueu-se rezando a voz do índio Manuel José e por entre suas preces dizia " – Cauma xente! Cauma! Nossa Senhora Mãe de Deus vai nos salvar." E assim fomos todos chegados a terra em razoáveis condições de saúde sãos e salvos. Daí nos recordando das palavras do índio Manuel José, o capitão Almirante Pêro Alvarez de Saco com a bênção do Padre Emanuel Teixeira, resolveu logo ali nomear aquele local de Cauma.
- E as gentes?
- Alguma da pior escumalha de corruptos e putéfias que na Índia e Malaca havia para lá os levámos forçosamente. Mas mal chegados logo por bem se estabeleceram e começaram a negociar com os nativos que por ali aparecem.
- E esses?
- Canalha ainda pior que a nossa. Reles piratas, ralé da gatunagem procurando fugir à justiça do Imperador da Sina e alguns pobres pescadores que naquele porto procuram abrigo. Enfim Senhor, uma chusma de gente corrompida e que pelo dinheiro tudo faz. Alguns em paga de um ou outro favor até a esposa oferecem como paga. Direi que a cidade tem tudo para vingar e se tornar próspera. Essa gente, ao contrário do que os Romanos diziam de Vossos antepassados Lusitanos, sem ofensa Meu Senhor, estas gentes governam-se e deixam-se governar.
- E da Sina?
- Bem, o Mandarim de Santão sabendo da nossa chegada enviou uns emissários para nos expulsarem pois diz que aquelas terras pertencem ao Imperador da Sina. Mas após árduas negociações e alguns pagamentos em géneros que transportáramos desde a Índia, lá se chegou a acordo que trago para Vossa Alteza corroborar com Vosso Real sinal e em poucas palavras trata o seguinte: eles permitem a nossa permanência para nos dedicarmos ao negócio, dentro de certos limites, mediante o pagamento de uma tença anual ao mandarim de Santão.
- E tu achas que Eu, Sua Alteza Real de Portugal e dos Algarves e de outras terras mais, me deva submeter a tal acordo?
- Se me permiti, acho que sim Vossa Alteza. Aquela terra, com aquela gente, tem tudo o que necessita para prosperar. E fica lá longe do Vosso olhar pelo que o que eles fazem não vos fere a vista. Depois, pode Vossa Alteza doar-lhes uma espécie de autonomia: nomeia uns quantos deles nobres, que constituam uma espécie de conselho, esse conselho que pague ao mandarim a sua tença e a Vossa Alteza a honra de continuarem a ser portugueses, filhos do vosso imenso Império.
- Ah meu bom Brandoni! Que seria eu sem ti. Ah! Ah! Ah! Vai lá à cozinha e escolhe a moçoila que mais te agrade e ela que te prepare um bom banho que estás precisado….
jaime crespo

terça-feira, 12 de abril de 2011

um destes dias

Salvador Dali - Metamorphosis of Narcissus, 1937

num destes dias, acordo,
tenho cinquenta anos, e uma vida
cavalgando-me as costas.
estou cansado, muito cansado,
um velho de setenta anos desdentado,
usando fralda.

desvanecem da juventude todos os sonhos,
radicalmente esfumados num último cigarro.

vou à janela
e corro os olhos pela longidão,
as luzes retiram-me os sentidos e os sentimentos
que nunca retive.

homem vertical,
procuro um plano horizontal.

e é então que encomendo a todos os antigos deuses, por favor, não me permitem cinquenta dias mais.