Nestes tempos assoberbados pelos interesses materiais e pelo
sucesso imediato, controlados pela rigidez das operações de somar e de subtrair
que os génios da economia nos vão impondo perante a passividade geral, ainda
vão acontecendo histórias de pasmar e que nos fazem ter esperança na
humanidade, outra.
Vejam senão, a seguinte história que amigo meu me contou.
Vésperas de natal, numa pequena vila do alto alentejo,
faleceu o último dos marialvas da terra e provavelmente dos restantes no país.
Sempre aprumado, calça justa de peitilho, camisa branca
impecável, colete e jaqueta feitos por encomenda e medida. As faces toldadas
por vastas patilhas, barba sempre feita no resto da cara. Aos pés, bota ou
botim, bicudos e de salto, em cabedal moldando-se ao próprio pé. A cabeça
guarnecida por largo chapéu, preto ou castanho de acordo com a disposição
geral, daqueles que dizemos “à lavrador”.
Se teve vida folgada e milagrosa, só ele o saberia e esse
como outros segredos levou-os de companhia para a cova.
Do que se sabia na vila é que foi homem de muitas vidas, umas
mais claras que outras e de amores mais de milhentos.
Corre, no entanto, que a dois foi fiel: à esposa, imposta
pela família e sociedade e a uma amante por quem se terá apaixonado ainda ambos
no dealbar da adolescência mas que nunca consumaram esse amor em boda e filhos
por imposição familiar e social, ou outros segredos que só deles são pertença.
Ora, falecido o cavalheiro, eis que a dita amante se
apresenta no portal da igreja matriz para velar o finado amante, amor de toda
uma vida tudo menos clandestina.
Conta o amigo meu que familiares, até na morte a família e a
conveniência social se nos fazem sentir, terá impedido o acesso a tão nobre e
pio ato.
Afastou-se então a dama daquele lugar soturno, já abalada nos
seus sentimentos e meia hora não era decorrida, fraquejava, derramada pelo chão,
morta.
Da carteira quase vazia, caía, dele uma fotografia.
Da carteira quase vazia, caía, dele uma fotografia.
Ainda se morre de amor.
Jaime Crespo